ARTIGO AMAURI MEIRELES – GREVE DE POLICIAIS

Jargão, termo técnico, termo científico são palavras, expressões específicas compreendidas por quem é de determinado ramo ou entende do assunto peculiar a certa profissão, a qual também tem conceitos e concepções próprios que, reunidos, dão origem à particular doutrina profissional.

            Maioria das profissões tem sua doutrina já sedimentada e, assim, estudos e pesquisas conduzem a seu aperfeiçoamento.

            Na área policial há muitos jargões, mas, lamentavelmente, ainda não há uma doutrina consolidada. E isso tem trazido prejuízos à atividade e à Instituição.

            Há poucos dias “por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou entendimento no sentido de que é inconstitucional o exercício do direito de greve por parte de policiais civis e demais servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública”.

  Dúvidas iniciais: exercício total ou parcial? Quem não é policial militar é policial civil, então, por extensão, integrantes das polícias administrativas (que também são polícias civis) não podem fazer greve? Há servidores públicos, atuando diretamente na segurança pública, que não são policiais? O que é atuar diretamente? O que é Polícia? O que é área de segurança pública ou seria, apoiando-se em verbetes pouco conhecidos e entendidos, área da salvaguarda social, dentro do espectro da defesa social? Estas e inúmeras outras indagações derivam exatamente do vácuo conceitual na atividade policial.

   O recurso, julgado pelo STF, “foi interposto pelo Estado de Goiás contra decisão do Tribunal de Justiça local (TJ-GO) que, na análise de ação apresentada naquela instância pelo Estado contra o Sindicato dos Policiais Civis de Goiás (Sinpol- GO), garantiu o direito de greve à categoria por entender que a vedação por completo da greve aos policiais civis não foi feita porque esta não foi a escolha do legislador, e que não compete ao Judiciário, agindo como legislador originário, restringir tal direito”. Em princípio, uma decisão intangível, até promulgação de lei que regulamente o exercício de greve no serviço público.  

Quanto à vedação do exercício do direito de greve previsto constitucionalmente aos militares, o representante do sindicato defendeu que “não se pode dar interpretação extensiva a normas restritivas presentes no texto constitucional”, no que está absolutamente correto.

Para a advogada-geral da União, “a paralisação de policiais civis atinge a essência, a própria razão de ser do Estado, que é a garantia da ordem pública, inserido no artigo 144 do texto constitucional como valor elevado. Os serviços e atividades realizados pelos policiais civis, inclusive porque análogos à dos policiais militares, devem ser preservadas e praticadas em sua totalidade, não se revelando possível o direito de greve”, concluiu. Ora, a essência, a própria razão de ser do Estado é o provimento da proteção e a promoção do progresso, nacionais e sociais! E a autoridade do Estado está bipartida em poder e força. O suporte da atividade desempenhada por policiais civis, de toda e qualquer polícia civil, é o poder, enquanto o suporte da atividade dos policiais militares é a força. Aos policiais civis, da Polícia Civil – PC, incumbem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, guardando mais analogia com policiais administrativos do que com policiais militares, das Forças Estaduais (as Polícias Militares – PMs), os quais têm forte analogia, sim, com as Forças Federais (as Forças Armadas – FFAA).  

Para o vice-procurador-geral da República, “algumas atividades estatais não podem parar, por serem a própria representação do Estado. E entre essas atividades, se incluem as atividades de segurança pública”. Evidentemente ficou a dúvida sobre quais são as demais atividades estatais que não podem parar. E quais são as demais atividades de segurança pública (sic) que, também, não podem parar?

O relator do caso, ministro Edson Fachin, votou no sentido do desprovimento do recurso do estado. De acordo com o ministro, “a proibição por completo do exercício do direito de greve por parte dos policiais civis acaba por inviabilizar o gozo de um direito fundamental. O direito ao exercício de greve, que se estende inclusive aos servidores públicos, tem assento constitucional e deriva, entre outros, do direito de liberdade de expressão, de reunião e de associação”. E mais: “O direito de greve não é um direito absoluto, mas também não pode ser inviabilizado por completo, até porque não há, na Constituição, norma que preveja essa vedação”. Para o ministro, “até por conta da essencialidade dos serviços prestados pelos policiais civis, o direito de greve deve ser submetido à apreciação prévia do Poder Judiciário, observadas as restrições fixadas pelo STF no julgamento do MI 670, bem como a vedação do porte de armas, do uso de uniformes, títulos e emblemas da corporação durante o exercício de greve”. Um parecer extremamente legalista e, sob certo aspecto, até incisivo em relação aos procedimentos de policiais civis em greve, propondo, em lugar de impedimentos, que se estabeleçam prescrições restritivas, o que é de uma coerência cristalina.  

O voto do relator, vencido no julgamento, foi acompanhado pela ministra Rosa Weber e pelo ministro Marco Aurélio, o qual afirmou que, com essa decisão, o Supremo “afasta-se da Constituição cidadã de 1988”.

O ministro Alexandre de Moraes divergiu do voto do relator, manifestando-se pelo provimento do recurso. Para ele há “dispositivos constitucionais que vedam a possibilidade do exercício do direito de greve por parte de todas as carreiras policiais (grifo nosso), mesmo sem usar a alegada analogia com a Polícia Militar”. Ainda, “a carreira policial é o braço armado do Estado para a segurança pública, assim como as Forças Armadas são para a segurança nacional. É inegável que há um paralelismo importante aqui entre segurança interna e a segurança nacional, inclusive pela inexistência de atividades paralelas na iniciativa privada”. Na expressão “todas as carreiras policiais”, certamente estão incluídas “todas” as polícias administrativas. Ora, é difícil enxergar, por exemplo, a polícia sanitária, a polícia de viação, a polícia das edificações, dentre inúmeras outras, como braço armado do Estado. Por outro lado, as Forças Federais (FFAA) estão para a defesa nacional (inteligência permanente, ação eventual), assim como as Forças Estaduais (PMs) estão para a defesa social (inteligência e ações permanentes), que precede aquela. Logo, é absolutamente necessária a discussão da tese de que a carreira policial (como um todo) é, efetivamente, o braço armado do Estado ou se trata de generalização equivocada. E, quando se parte de pressuposto equivocado, ainda que argumentando corretamente, a conclusão é errônea.

Em outro trecho, “a carreira policial é mais do que uma profissão, é o braço armado do Estado, responsável pela garantia da segurança interna, ordem pública e paz social. Não é possível que o braço armado do Estado queira fazer greve. O Estado não faz greve. O Estado em greve é anárquico. A Constituição não permite”. Insiste-se, braço armado do Estado-União são as Forças Federais (Exército, Marinha e Aeronáutica), e do Estado-membro é a Força Estadual (a PM) que, instituição militar, tem vedação constitucional de fazer greve, como, de resto, os Agentes Políticos. Já o Estado, em sua ampla estrutura povoada pelos demais agentes públicos, pode fazer greve. A Constituição permite! Falta promulgar lei que regulamente o exercício de greve no serviço público.

E disse mais: “Como compatibilizar que o braço armado do Estado mantenha as necessárias disciplina e hierarquia com o Direito de Greve, sem colocar em risco a segurança pública, a ordem e a paz social?” Parece que S.Exa., em determinado momento, pensou estar julgando o direito de greve dos policiais militares e não o dos integrantes das várias polícias civis.

O ministro, argumentando que a carreira é diferenciada, afirmou que “a atividade de segurança pública não tem paralelo na atividade privada. Enquanto existem paralelismos entre as áreas públicas e privadas nas áreas de saúde e educação, não existe a segurança pública privada, nos mesmos moldes da segurança estatal, que dispõe de porte de arma por 24 horas, p. ex.” E mais, “não há como se compatibilizar que o braço armado investigativo do Estado possa exercer o direito de greve, sem colocar em risco a função precípua do Estado, exercida por esse órgão, juntamente com outros, para garantia da segurança, da ordem pública e da paz social”.

Segundo o ministro, “no confronto entre o direito de greve e o direito da sociedade à ordem pública e da paz social deve prevalecer o interesse público e social em relação ao interesse individual de determinada categoria. E essa prevalência do interesse público e social sobre o direito individual de uma categoria de servidores públicos exclui a possibilidade do exercício do direito de greve, que é plenamente incompatível com a interpretação do texto constitucional”.

Enfim, em quatorze laudas, ele considerou a Instituição-polícia como sendo o braço armado do Estado, o que impediria o exercício do direito de greve. É possível que tenha tido como referência algumas Polícias Civis, que, em extrapolando suas funções de polícia investigativa, não são o melhor exemplo de braço armado.

Entre as pragmáticas e categóricas argumentações do Tribunal de Justiça/GO, do representante do Sindicato dos Policiais Civis (da Polícia Civil – nome inadequado) de Goiás e do ministro Edson Fachin, e as discutíveis posições doutrinárias do ministro Alexandre Torres, acompanhado por outras autoridades, venceu a tese do impedimento do exercício do direito de greve de policiais da Polícia Civil de GO, estendendo-o aos demais servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública. Fundamento: a Polícia, como braço armado do Estado, não pode fazer greve. 

Entretanto, contraditada esta tese com a demonstração de que somente a Força Estadual (PM – nome inadequado) é o braço armado, os policiais civis (das Polícias Civis e das polícias administrativas), que não são braço armado, podem fazer greve? Por certo, sim, com restrições, conforme sentencia o ministro Fachin.    

Votaram com o ministro Alexandre Torres os ministros Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e a ministra Cármen Lúcia.

Data vênia, mais uma vez, interpretações díspares, na área da defesa social (ratifico e insisto, erroneamente chamada área da segurança pública, inclusive na Constituição), podem ter levado a decisões equivocadas.

Ora, greves existem porque há um descompasso entre empregado e empregador. Elas não devem ser temidas, mas, sim, administradas e encerradas com a supressão da divergência. Além da vedação constitucional, é intrínseco à liturgia das instituições militares e de agentes políticos o impedimento de fazer greves. Já instituições civis, públicas ou privadas, não têm (e nem devem ter) dispositivos impeditivos de greve, sendo razoável, no interesse público, que haja prescrições restritivas.

Finalizando, menos que discutir o mérito da decisão do STF (não é nossa área), pretendeu-se mostrar que a falta de consolidação de conceitos na atividade policial, provocando desnivelamento na linguagem, podem ensejar interpretações díspares, legislação inadequada, decisões equivocadas, interna e externamente.

                                                                          (*) Coronel Reformado da PMMG

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