CONVERSA COM ESPECIALISTA

Evento: “Setembro amarelo”

Entrevistados: Cel PM QOR Mônica F. Lage e 1º Ten PM QOS Antônio Alvim

Tema: Conversando sobre autolesão em adolescentes.

Em setembro de 1994, nos Estados Unidos, a partir do suicídio de um jovem de 17 anos iniciou-se um movimento de conscientização para a necessidade de prevenção do suicídio e de discussão de temas referentes à saúde mental. No Brasil essa mobilização ganhou força a partir do ano de 2015, por iniciativa do Centro de Valorização da Vida (CVV), do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Ao longo de todo o mês de setembro, entidades públicas e privadas realizam diversas ações em apoio à campanha.

Nós da AOPMBM estamos atentos à importância de se abordar abertamente esse tema e também estamos participando do “Setembro Amarelo” com o apoio de profissionais de saúde mental do Quadro de Oficiais de Saúde das entidades que representamos. Este é um assunto bastante amplo, já que o suicídio é multicausal e geralmente está ligado a algum comprometimento emocional ou psiquiátrico. Desta forma, neste ano de 2022, o Departamento da Mulher Militar – DMM trouxe à discussão um recorte bem específico dentro deste grande tema, buscando informar e orientar as famílias no que diz respeito à autolesão, ou automutilação dos adolescentes. Essa é uma preocupação que se tornou comum entre os pais e para que eles saibam como enfrentar essa questão a Ten Cel Eliene, diretora do DMM, entrevistou a psicóloga Mônica Lage, Cel Veterana da PMMG, e o psiquiatra Antônio Alvim, 1º Ten do Quadro de Oficiais de Saúde da PMMG, explorando um pouco do conhecimento deles sobre este comportamento.

1.   Vamos iniciar entendendo o que significa/caracteriza a autolesão ou automutilação, como tornou-se mais comum denominar:

MÔNICA LAGE: A autolesão, automutilação ou Cutting é um comportamento onde o sujeito, de forma voluntária, agride-se através de cortes, pequenas queimaduras, ou arrancando fios de cabelo ou cílios de si mesmo. As lesões costumam ser feitas principalmente nos braços, pernas e abdômen e as queimaduras podem ser feitas com cigarro, por exemplo.

ANTÔNIO ALVIM acrescenta que a autolesão pode ter ou não a intenção consciente de suicídio. É algo que não é aceito socialmente em meio a sua própria cultura e não é feito apenas com a intenção de exibição, sendo diferente de colocar um piercing ou fazer uma tatuagem, por exemplo. Sobre os tipos mais comuns de autolesão, além daqueles citados pela Cel Mônica Lage, lembra também do comportamento de bater a cabeça contra a parede e enfiar objetos pontiagudos no corpo, como pontas de lápis ou agulhas.

2.  Somente os adolescentes praticam a autolesão ou este é um comportamento usual também em adultos?

ANTÔNIO ALVIM: Atualmente as estatísticas apontam que um em cada 12 adolescentes praticam a autolesão. Quando comparamos estudos conduzidos em diferentes grupos etários, os adolescentes apresentam uma prevalência mais alta ao longo da vida do que outras faixas etárias, mas o comportamento autolesivo pode ocorrer em qualquer idade, sendo mais comum em indivíduos do sexo feminino.

3. Como a psicologia e a psiquiatria interpretam os atos de autolesão?

MÔNICA LAGE: Na visão da Psicanálise, as automutilações têm intenção de diminuir um sofrimento psíquico, uma angústia, muitas vezes relacionada a sintomas depressivos e dificuldade com a imagem do corpo. Através deste ato, o adolescente tenta transferir a dor emocional para a dor do corpo, em uma tentativa de localizar, determinar um sentimento angustiante e avassalador. A dor e a marca no corpo funcionam como apaziguador de angústia. É mais fácil lidar com uma dor no corpo, do que com um sentimento que não se consegue nomear. O corte na pele silencia o grito desesperado do sofrimento. ANTÔNIO ALVIM: O comportamento autoagressivo não é um diagnóstico isolado, mas um comportamento que pode acompanhar outros transtornos mentais, como ansiedade e depressão. Na maior parte dos casos, os atos de autolesão são uma tentativa de o indivíduo lidar com as emoções e com a dor psicológica. É, principalmente, uma forma de aliviar sensações de vazio ou indiferença e cessar sentimentos ou sensações ruins, como tristeza e ansiedade. Dificuldade para falar sobre os próprios sentimentos, conflitos interpessoais, vergonha, autocrítica exacerbada, impulsividade podem estar presentes nesses adolescentes.

4.   Nos últimos anos tem sido comum que adolescentes e pré-adolescentes pratiquem a autolesão. A que podemos atribuir esse comportamento?

MÔNICA LAGE: O ato de automutilar-se aparece como sintoma social de forma mais intensa nos últimos quinze anos, principalmente em adolescentes do sexo feminino. Isto nos leva a pensar em uma relação da automutilação com um ideal, quase inalcançável de um corpo perfeito, que aparece nas redes sociais. Vivemos em uma sociedade onde se estabeleceu padrões para se ter uma vida glamourizada. O adolescente se sente pressionado a ter um corpo magro, perfeito, uma vida social intensa, feliz e compartilhada. Aquele que não consegue entrar neste enquadre, ou seja, praticamente todos, sente-se fracassado, inadequado, angustiado. Há várias formas de lidar com esta falta, seja através de comportamentos autodestrutivos, sintomas psíquicos ou físicos, afastamento social, etc.

A automutilação é um sintoma multideterminado, não podemos falar de uma única causa. Cada sujeito carrega sua história, seus embaraços, sua forma de lidar com a angústia. Mas podemos perceber que o sintoma social, de que falei acima, favorece a manifestação de atos que infrinjam dor a si próprio, em uma tentativa de localizar aquilo que não se consegue falar e conhecer. Sofre-se na dor física, o que não se dá conta de sofrer emocionalmente.

5.   Quais os sinais que devem chamar a atenção dos pais para o fato de que seu filho pode estar se auto lesionando?

ANTÔNIO ALVIM: Os pais devem ficar atentos para as alterações bruscas do comportamento, o aumento da irritabilidade, sentimento de tristeza, aumento da ansiedade, isolamento, amigos com quem o jovem ou a criança se relaciona, tempo em que permanece na internet, redes sociais a que pertence. Os atos autolesivos acabam gerando cicatrizes, que em alguns casos podem ser “escondidos” por roupas. Assim aquele adolescente que no calor acaba utilizando roupas de manga comprimida, ou evitam usar roupas de praia perto dos pais ou amigos pode estar se cortando. Em outros casos, essas cicatrizes são expostas, quase como um pedido de socorro. Machucados com “histórias mal contadas” também merecem atenção.

6.  Como os pais podem lidar com esse comportamento quando o identifica em seus filhos?

ANTÔNIO ALVIM: Os pais devem manter a calma. É necessário que a criança e o adolescente saibam colocar os sentimentos que ele experimenta em palavras. Esse é um caminho para que eles possam se sentir compreendidos, acolhidos e busquem uma outra forma de expressar essa dor, de compartilhar, que não a autoagressão. A família deve ouvir e procurar compreender o que se passa, sem procurar culpados, sem castigos; aproximar-se; não deve haver uma queda de braços com a criança ou adolescente, e sim avaliar como e o momento oportuno de oferecer ajuda, que deve sempre contar com apoio de um psiquiatra e psicólogo.

MÔNICA LAGE também alerta para o fato de que educar é uma das tarefas mais difíceis da sociedade. Não há uma receita pronta, um manual de como fazer. A educação ideal é um misto de amor e limite. Onde há muito amor sem limite, ou muito limite sem demonstração de amor, instala-se um conflito. No caso dos adolescentes, conseguir um equilíbrio entre o estar presente e não ser invasivo. Colocar-se em uma posição de acolhimento, mostrar-se interessado, sem invadir demais o espaço do filho. Achar este ponto de equilíbrio. Identificando comportamentos lesivos e preocupantes, tem-se que conversar com o adolescente e procurar ajuda profissional (psicólogo, psiquiatra, a escola, médicos em geral).

7.  Autolesão pode ser considerada uma forma de tentativa de suicídio?

ANTÔNIO ALVIM: Ela pode ter ou não intencionalidade suicida. Mas de toda forma, é um comportamento que muitas vezes abre portas para o suicídio, seja por erro na forma de se agredir – que pode acabar levando a morte – ou mesmo por habituação – a autolesão deixa de aliviar a dor psicológica do indivíduo que passa a ver a morte, então, como uma opção.

8.  Autolesão pode indicar que o autor em breve pode vir a tentar suicídio?

ANTÔNIO ALVIM: Certamente é um indicativo que a saúde mental não vai bem. Não é um diagnóstico psiquiátrico isolado. Na maioria das vezes acompanha outros transtornos mentais como depressão, ansiedade, uso de substâncias e transtornos de personalidade.

9.   Autolesão pode ser considerada um problema de saúde mental, ou mesmo um indicativo de que o indivíduo pode ter problemas de saúde mental?

MÔNICA LAGE: As autolesões em si não são um transtorno mental, mas um comportamento. Podem estar associados a algum transtorno mental, como a Depressão, a Bipolaridade, Borderline, etc. O comportamento de autolesão é um importante sinal de que aquele sujeito não está conseguindo lidar com o seu sofrimento, que algo não vai bem.

10.  Quais são os tratamentos indicados para esse tipo de comportamento?

MÔNICA LAGE: Dentro da perspectiva de que as autolesões são uma forma de lidar com uma angústia que não se consegue nomear, a psicoterapia teria uma função importante no tratamento destes sujeitos, uma vez que falando de si, da sua dor, de sua história, é possível contornar e encontrar outras soluções para lidar com o sofrimento psíquico. A psiquiatria também se faz necessária em vários casos, onde há um transtorno ou um sintoma específico de saúde mental.

11.  Existe alguma forma de prevenir a predisposição do adolescente para a prática da autolesão?

MÔNICA LAGE: Como se trata de um comportamento e não de um quadro clínico é muito delicado falar em predisposição e prevenção. Podemos pensar que uma estabilidade familiar e social em um ambiente acolhedor e que coloque limites, propicie o não aparecimento deste tipo de conduta. Espaços de fala, de compartilhamento e socialização adequados também fazem parte da saúde mental.

ANTÔNIO ALVIM lembra também que o incentivo à prática de exercícios físicos é fundamental, além da redução do bullying nas escolas e redes sociais.

12.   A adolescência é uma fase do desenvolvimento emocional em que o indivíduo pode ser facilmente influenciado pelo grupo social. Você considera que a autolesão pode acontecer simplesmente por um comportamento de imitação?

MÔNICA LAGE: O grupo tem um papel muito importante no desenvolvimento da adolescência. É importante sentir-se pertencente e aceito no seu meio, e nesta fase ocorre imitação de comportamentos de

colegas. Mas de acordo com a literatura, o comportamento autoagressivo recorrente, como é o que tratamos aqui, não seria apenas uma imitação de grupo. Ele acontece quando já existe um sofrimento do sujeito em relação a sua própria história, seu contexto familiar específico, no qual o ato de se automutilar exerce a função de lidar com a angústia e com o sofrimento emocional intenso. Porém, se auto lesionar pode trazer um alívio momentâneo, mas não produz saúde e alívio emocional. Na verdade, o sofrimento só aumenta, trazendo mais danos emocionais.

13.   Quais palavras você poderia deixar para os pais de adolescentes e pré-adolescentes no sentido de orientá-los a lidar melhor com seus filhos nesta fase da vida?

MÔNICA LAGE: A adolescência é um período complexo de transição, onde pais e filhos se sentem muitas vezes perdidos, sem bússola. A angústia também está do lado dos pais: o que fazer, até onde posso interferir, como estimular o crescimento do meu filho? São várias as questões. O adolescente precisa, ao mesmo tempo, de espaço para amadurecer e limite para o agir. Precisa se sentir seguro para se lançar no mundo. Um mundo contemporâneo, marcado por violência, ideais inalcançáveis, exigências sociais. O que posso deixar de palavras para os pais é que estejam atentos a comportamentos como intensa tristeza, evitação social, transtornos alimentares e do sono. Conversem e estejam abertos para ouvir. Sejam ponte para seus filhos. E quando estiver difícil ou perceber alterações comportamentais maiores, procurem ajuda específica. O adolescer pode ser e deve ser uma fase de descobertas, alegrias e prazer.

ANTÔNIO ALVIM: Sejam pais presentes e empáticos. Facilitem desde cedo o reconhecimento e a expressão de sentimentos de forma saudável e natural, sem menosprezar o que seu filho sente. Mantenham regras e rotinas claras no ambiente doméstico, mas sempre de forma em que não falte suporte emocional. E ajude seu filho traçar um caminho de independência em que ele seja capaz de resolver os conflitos e as dificuldades que aparecerão ao longo da vida.

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