ARTIGO CORONEL AMAURI MEIRELES – CRUZADA QUIXOTESCA

Sempre que se aproxima o período eleitoral, aumenta o clamor de eleitores, dirigido aos candidatos, no sentido de se priorizar saúde, educação e segurança. Há mais de décadas, antes das eleições, tem sido dado destaque à necessidade de governantes adotarem certos procedimentos que visem à redução da insegurança.

Hoje, tem-se a certeza de que estamos errados, ao pedir providências à maioria de políticos, pois eles não têm convicção, mas simples noção da verdadeira extensão do que são efetivamente esses três problemas sociais basilares. E aqui cabe um mea-culpa, particularmente de profissionais envolvidos com essa temática, “por queimar vela com defunto ruim”. De fato, o caminho a ser percorrido deveria ter sido o que mantivesse a população informada, para que, aí, sim, pudesse fazer cobranças objetivas aos políticos, aos governantes, obrigando-os a conhecerem e entenderem os problemas que afligem as comunidades..

Tomemos por exemplo, dentro da insegurança, a criminalidade violenta, denominação genérica para o conjunto de certos crimes, como homicídios e tentativas, lesão corporal, roubos, furtos, latrocínios, estupros, tráfico de drogas e outros. É assunto recorrente em todo o Brasil, desde 1972, quando a mídia cunhou a expressão “violência urbana”, até a recente e infeliz manifestação de autoridades governamentais de que a segurança pública está falida. E, objetivamente, o que tem sido feito? E, ainda, na oportunidade, o que essa expressão significa para eles? Um quixotesco moinho de vento, que os derrota, a cada intervenção pontual, descontínua ao longo de quase cinquenta anos?

A primeira década do surgimento dessa ameaça, a de 70, ficou marcada pela desorganização social, que se instalou nas metrópoles e nas grandes cidades, em decorrência do êxodo rural, gerando explícitas crises de moradia, transporte, alimentação, emprego e escola, sendo objeto de medidas paliativas do governo. Insidiosa e paralelamente, surge e evolui um vírus social, atacando determinados bolsões da população, que passaram a ter postura, procedimentos, comportamentos, socialmente doentios. Refere-se, aqui, à descrença, ao desrespeito e à desobediência relativos aos valores sociais e à ordem social, que afetou e vem afetando muitos adultos e a formação ética de muitas crianças, que cresceram e crescem com a marca de meios-cidadãos, exigindo direitos, mas não praticando deveres sociais. Pego de surpresa, o governo, com ênfase nas instituições policiais, incrementa a pesquisa e inicia debates sobre esses fatos, que se transformaram em problemas sociais.

A segunda década, a de 80, ficou marcada pela oportuna entrada em cena de sociólogos, cientistas sociais, cientistas políticos, jornalistas, filósofos, antropólogos, médicos e psicólogos no estudo e na pesquisa desse fato social. Lembra-se que uma discordância, atenuada ao final da década, foi o entendimento de alguns representantes desse grupo (genericamente falando) de que a violência poderia ter como causa vulnerabilidades socioeconômicas (fome, miséria, desemprego, desigualdade) e a percepção de policiais de que as causas eram vulnerabilidades sociopolíticas (deformação ética – que vem degradando gerações e se aprofundou com a crise na Educação e na fragilização do educador – e a distopia social – funcionamento anômalo de órgãos estatais). De positivo, duas necessidades identificadas e acordadas tacitamente pelas correntes: a primeira, a urgente necessidade de o Estado corrigir citada distopia, que acelerava a exclusão social, aumentando o contingente de marginalizados, celeiro para cooptação pelos marginais; a segunda, e em paralelo, que a forças públicas estaduais (com o péssimo cognome de polícias militares) incrementassem a interação comunitária, através aproximação, estímulo a ações e apoio às lideranças comunitárias.

Em SP, surge o Comando Vermelho, tendo, como uma das origens, a fragilidade do sistema de execução penal administrativa (sistema carcerário, no popular), em razão de descaso, negligência de políticos e governantes com a Administração desse sistema, ainda que agentes penais (penitenciários) se desdobrassem nas gestões locais. Por outro lado, de iniciativa das polícias, surge, no início da década, o Movimento Policiológico de 82, que deu origem à Policiologia. Em 1988, assiste-se ao incremento da interação comunitária, primeiros passos da Polícia Comunitária, com a criação dos Conselhos Comunitários de Seguranca Pública (CONSEP), em MG.

A de 90 foi marcada pelo ataque ao sistema policial, eleito o bode expiatório, isto é, o responsável pela expansão da criminalidade violenta. No início dessa década imperou e se alastrou o entendimento que a elevação da espiral da violência era resultado da incompetência das Polícias, principalmente a ostensiva, a militar. Oficiais e praças dessas instituições se puseram em campo para demonstrar que trabalhavam na causalidade, no vértice para onde fluem causas e efeitos da criminalidade, vale dizer, não tinham ação sobre os fatores geradores e nem sobre os resultados. Em paralelo, surgiram seminários, conferências, apresentando teses, debates, tentando mostrar que uma instituição policial não pode ser militarizada e, ainda, pregavam a unificação das polícias civil e militar, em razão de equivocado conhecimento e enquadramento constitucional da instituição. Perda de tempo e gasto inútil do dinheiro público! A ebulição cedeu com a tese de que a discussão deveria girar em torno do que é a PM (força auxiliar do EB, força pública estadual, força garantidora da ordem social) e, não, em torno do que ela faz (operações de policiamento ostensivo) nas situações de normalidade, alteração, perturbação até surgimento de grave perturbação da ordem social (antessala da perturbação da ordem nacional) quando, também, realiza outras operações.

No início da década é criado o PCC. O primeiro Plano Nacional de Segurança Pública surgiu, em 1991, no governo Fernando Collor, dando ênfase à atuação integrada das polícias. Falhou ao tratar a violência como problema de polícia e não como um fato sociopolítico multidisciplinar. Em 96, é lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos. Em 1998 é criada a Secretaria Nacional de Seguranca Pública (SENASP).

A de 2000 mostra uma surpreendente transmigração de crimes violentos, com significativa interiorização e acentuado impacto nas regiões norte e nordeste. Paradoxalmente, embora nessa década tenha entrado em vigor a lei que aprovou o Estatuto do Desarmamento, constatou-se aumento no tráfico de fuzis (AR-15, FAL), submetralhadora UZI e pistolas 9mm (Luger e Glock), na posse de criminosos, a par da expansão do sequestro relâmpago. Na primeira metade dessa década constata-se uma acelerada elevação das taxas de homicídio. Em 2000, foi lançado o Plano Nacional de Segurança Pública – PNSP e, após três anos, foi criado o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Em razão do clamor, da inquietação, da angústia que toma conta da população, revigoram-se os Programas Nacionais de Direitos Humanos, com o lançamento do segundo em 2002 e do terceiro em 2009. Ainda que certos setores da imprensa e alguns empresários se colocassem contra determinados conteúdos do plano III (o que levou o então presidente Lula a trocar 07 – sete – pontos) – e nós, particularmente, nos juntarmos a eles – é de se reconhecer, por uma questão de justiça, que, até então, foi o documento mais bem elaborado, relativo à proteção social. E, possivelmente pela ausência de políticas públicas para essa atividade, foi além de sua área, fato que jamais foi contestado por quem quer que seja. O conteúdo, o esmero, a extensão, a profundidade, a objetividade contidos no PNDH-III, de 2009, e o relatório das atividades, apresentado em janeiro 2015, demonstram porque a política dos direitos humanos vem fortalecendo-se em todo o Brasil, através engajamento de lideranças classistas, comunitárias e do terceiro setor, em geral.

Pela qualidade mostrada, essa equipe, que elaborou esses documentos, ou similar, deveria ser convocada para definir, também, a política de deveres humanos!…

Essa estrutura é uma boa referência para o novo Ministério da Defesa, que deve coordenar o trabalho multissetorial de elaboração das políticas públicas para redução da insegurança, para serem desdobradas em diretrizes de orientação, na busca do ambiente de segurança social.

Nessa década tivemos o Plano Nacional de Segurança Pública (2000) e, nesse mesmo ano, foi lançado o Plano Nacional de Segurança Pública – PNSP. Após três anos, foi criado o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Tivemos, ainda, o Projeto Nacional de Segurança Pública para o Brasil (2003) e o Pronasci – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (2007), de concepção razoável, mas de pífios resultados. Naufragou abraçado com a Conferência Nacional de Segurança Pública (1ª. CONSEG) que, após o auê para sua realização, não teve as propostas operacionalizadas, porque, presume-se, divergiam do que pretendiam e estimavam seus organizadores.

Em 2010 começa a sedimentar-se a conscientização da gravidade do problema, principalmente após a constatação vergonhosa de que nosso país é campeão mundial em número de homicídios, com 60.000 por ano. No ranking de países mais violentos, ocupamos o 10º lugar, com 28,9 por 100.000 habitantes. Além disso, assiste-se a uma discussão, ainda tímida, sobre a sensação de impunidade (pós-pena: responder em liberdade, progressão de regime, etc.) que, inclusive, às vezes, é confundida com impunição (pré-pena – recursos protelatórios, crimes não solucionados, que desafiam as leis, as autoridades e o próprio governo, etc.). Embora o decreto 3.897 fixe as diretrizes para o emprego das Forças Armadas nas operações de garantia da lei e da ordem (GLO), desde 24/Ago/01, somente nessa década essas ações são mais intensificadas, com destaque para o emprego mais volumoso do EB (exército brasileiro).

Várias ações foram desenvolvidas, desde a promulgação da CF/88, a denominada constituição-cidadã. Aliás, melhor seria meio-cidadã, visto que elenca dezenas, centenas de direitos e nem um dever sequer. Enfim, os equívocos têm sido muito grandes, o que, por certo, tem impedido providências efetivas em relação à violência da criminalidade: ações pontuais e assistêmicas, descontinuidade, conceituação heterogênea, ausência de políticas públicas e muito mais. O mais forte deles talvez seja o contido no Capítulo III, Da Segurança Pública, em seu Art. 144: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio…”, Ora, segurança não se exerce, segurança é um ambiente. Sendo bastante condescendente, é possível afirmar que há uma certa mística envolvendo a expressão Segurança Pública. Isso porque, de fato, há várias conceituações dessa expressão e, em particular, de segurança, guardando equivocada sinonímia com proteção, defesa, atividade profissional, um produto. Policiologicamente, o entendimento é de que o Capitulo constitucional deveria abordar a Defesa Social, um mecanismo de proteção social, expressão bem mais abrangente que a anacrônica Seguranca Pública.

Enfim, governantes não perceberam que a proteção da sociedade não é um problema apenas da Polícia, mas, sim, um trabalho multissetorial que exige pesquisa de causas e efeitos e, também, fixe estratégias de enfrentamento e mitigação. Há anos, ao invés de lutar contra fatores geradores da insegurança, lançam-se contra moinhos de vento e atacam rebanhos de ovelhas. Décadas de ações paliativas!… Urge um Sancho Panza, capaz de elaborar políticas públicas de defesa social, para serem desdobradas em planos, programas e projetos pragmáticos. Um efetivo trabalho multidisciplinar!…

(*) Coronel Reformado da PMMG

Foi Comandante da Região Metropolitana de BH

 

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