ARTIGO RODRIGO FOUREAUX – A LEI 13.491/17 E A AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR

Em 16 de outubro de 2017, foi publicada com vigência imediata a Lei 13.491, que modificou o Código Penal Militar e ampliou a competência da Justiça Militar.

Nesse artigo abordaremos detalhadamente a mudança e as consequências práticas e jurídicas.

1. DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR

À Justiça Militar compete julgar os crimes militares definidos em lei (artigos 124 e 125, § 4º, ambos da Constituição Federal).

Os crimes militares encontram definição no art. 9º do Código Penal Militar.

A Justiça Militar da União analisa somente a natureza do crime cometido para definir a sua competência, seja o acusado civil ou militar. Portanto, tem-se que a competência da Justiça Militar da União, por decorrer somente da matéria (crime militar), é ratione materiae.

A Justiça Militar estadual analisa a natureza do crime e a condição pessoal do acusado, na medida em que julga somente os militares (art. 125, § 4º, da CF). Portanto, a competência da Justiça Militar estadual é definida em razão da matéria e em razão da pessoa (ratione materiae ratione personae).

Vamos abordar neste artigo as alterações promovidas pela Lei 13.491, de 13 de outubro de 2017.

Antes da alteração, o art. 9, II, do Código Penal Militar previa o seguinte:

II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

Após a mencionada lei, passou a prever que:

II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:   (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

Nota-se, portanto, que houve uma ampliação dos crimes de natureza militar, uma vez que qualquer crime existente no ordenamento jurídico brasileiro poderá se tornar crime militar, a depender do preenchimento de uma das condições previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.

Antes, o inciso II era claro ao dizer que somente os crimes previstos “neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum” eram crimes militares.

Isto é, somente os crimes previstos no Código Penal Militar eram crimes militares.

Com a alteração legislativa, a previsão é de que “os crimes previstos neste Código” (Código Penal Militar) e os “previstos na legislação penal” (todas as leis penais do país) também são crimes militares, quando preenchida uma das hipóteses do inciso II do Código Penal Militar.

As hipóteses previstas no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar são, em síntese, os crimes cometidos entre militares; envolvendo militar em lugar sujeito à administração militar contra civil; militar em serviço ou atuando em razão da função, hipótese de maior incidência dos crimes militares; militar em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra civil; militar durante o período de manobras ou exercício contra civil; militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar.

Como exemplo, podemos citar: a) crime de disparo de arma de fogo praticado por militar em serviço; b) crime de tortura praticado por policial militar em serviço ou em razão da função: c) crime de abuso de autoridade praticado por militar em serviço; d) assédio sexual; e) crime de possuir imagens de crianças e adolescentes em situações pornográficas, quando os militares a obtiverem em razão do serviço e tenham essas imagens não com a finalidade de comunicarem a autoridade competente.

Os crimes dolosos contra a vida de civil continuam sendo de competência do tribunal do júri, consoante art. 125, § 4º, da Constituição Federal. Isto é, os crimes de homicídio doloso, induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, infanticídio e de aborto são de competência do tribunal do júri, quando a vítima for civil.

Todos os outros crimes existentes no ordenamento jurídico brasileiro, quando cometidos em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, são de competência da Justiça Militar.

Por se tratar de norma que alterou a competência, é de natureza processual e deve ser aplicada imediatamente, na forma do art. 5º do Código de Processo Penal Militar e art. 2º do Código de Processo Penal.

Em que pese a alteração ter ocorrido no Código Penal Militar (lei material), tem conteúdo essencialmente processual, o que é denominado de norma heterotópica.

Cuida-se de conteúdo processual por tratar da competência da justiça militar, não havendo maiores repercussões quanto à norma penal no tempo, análise de retroatividade para beneficiar o réu ou outras repercussões para o acusado, a não ser o deslocamento da competência para a Justiça Militar.

Em se tratando de competência, quando há alteração da competência absoluta, como é o caso, por se tratar da matéria (crime militar), os autos devem ser remetidos imediatamente ao juízo competente (art. 43 do CPC c/c art. 3º, “a”, do CPPM), salvo se já houver sentença.

Assim, todos os processos no país que estejam tramitando na Justiça Comum, quando tiverem sido cometidos por militares em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, do Código Penal Militar devem ser remetidos, imediatamente, à Justiça Militar.

Caso o processo já esteja sentenciado, o recurso a ser interposto deverá seguir a competência já disposta. Isto é, se houver sentença proferida pela Justiça Comum, o recurso deverá ser interposto para o Tribunal de Justiça comum[1]. Essa observação se faz necessária somente para os Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, pois possuem Tribunal de Justiça Militar. Nos demais estados o recurso a ser interposto já será para o Tribunal de Justiça comum.

Na hipótese em que houver previsão do mesmo fato como crime no Código Penal Militar e na legislação penal comum, deverá ser aplicado, a princípio, o Código Penal Militar, em razão do princípio da especialidade, como a hipótese do crime de lesão corporal e de estupro.

A Súmula 90 do STJ que prevê que “Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele.” perdeu a validade, uma vez que não haverá mais crime comum simultâneo ao crime militar, tendo em vista que quando o militar estadual cometer crime previsto na legislação penal comum, em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º, do Código Penal Militar, o que ocorre geralmente, quando o militar está em serviço ou atuando em razão da função, o crime será militar.

Portanto, a Súmula 90 do STJ perdeu a razão de ser e a alteração legislativa põe fim à duplicidade de processos que os militares enfrentam na justiça militar e justiça comum, pelo mesmo fato. Os fatos devem ser julgados, exclusivamente, pela justiça militar.

A Súmula 172 do STJ que dispõe que “Compete à Justiça Comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.”, igualmente, perdeu a validade, uma vez que os crimes de abuso de autoridade passam a ser julgados pela Justiça Militar.

A Súmula 75 do STJ que diz que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar o policial militar por crime de promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal.” perdeu a validade, uma vez que o militar ao promover ou facilitar a fuga de preso de estabelecimento penal comum estará em serviço ou atuando em razão da função, o que, obrigatoriamente, remete a competência para a Justiça Militar.

A Súmula 06 do STJ que assevera que “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar delito decorrente de acidente de trânsito envolvendo viatura de Polícia Militar, salvo se autor e vítima forem policiais militares em situação de atividade.”, deve ser lida com cautela, na medida em que mesmo que o crime cometido seja previsto no Código de Trânsito Brasileiro, se cometido por militar em serviço, deverá ser julgado pela Justiça Militar.

Por fim, a alteração legislativa não abrangeu as contravenções penais, uma vez que o art. 9º, II, do Código Penal Militar considera militar somente os crimes previstos no Código Penal Militar e os previstos na legislação penal, quando praticados em uma das hipóteses previstas no inciso II.

Nota-se que não houve menção às contravenções penais, mas somente aos “crimes”. Portanto, não é possível falar em contravenção penal militar.

2. DA APLICAÇÃO DOS INSTITUTOS PENAIS E PROCESSUAIS PENAIS PREVISTOS NA LEGISLAÇÃO PENAL COMUM

Diante das alterações promovidas, conforme exposto, tem-se que a Justiça Militar poderá processar e julgar os crimes previstos na legislação penal comum, bem como aplicar os institutos típicos do direito penal e processual penal comum com os requisitos que lhe são próprios.

Dessa forma, a Justiça Militar deverá aplicar as penas restritivas de direito previstas no art. 43 do Código Penal; a suspensão condicional da pena prevista no art. 77 do Código Penal; o livramento condicional previsto no art. 83 do Código Penal, dentre outros institutos.

A aplicação da lei penal comum deve ocorrer na íntegra quando o crime a ser julgado tiver previsão fora do Código Penal Militar. Do contrário haverá verdadeira lex tertia. Isto é, a mistura e combinação de leis pelo juiz, como se estivesse criando uma terceira lei, inexistente, o que já foi rechaçado pelo Supremo Tribunal Federal.[2]

É possível haver o cometimento de crime hediondo militar, consoante a Lei 8.072/90, como na hipótese do crime de favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável, cometido pelo militar em razão da função.

Caso haja condenação por crime hediondo, as consequências da hediondez do crime deverão ser aplicadas, como a impossibilidade de anistia, graça e indulto; a inafiançabilidade e a progressão de regime após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.

Haverá uma melhor análise da aplicação da Lei de Execução Penal, uma vez que esta ocorrerá somente na Justiça Militar, sendo possível que o juiz de direito do juízo militar (juiz auditor) aplique os institutos “com base na unificação das penas impostas”, conforme leciona Fernando Galvão[3].

Cabe observar que a alteração legislativa não promove apenas uma ampliação da competência criminal da Justiça Militar estadual. Com a integração da legislação penal extravagante ao contexto militar, foi possível corrigir problemas graves decorrentes da desatualização do Código Penal Militar. Somente agora, por exemplo, será possível caracterizar um crime militar hediondo. Também importa notar que a modificação contribuiu para a harmonia do sistema normativo que trata da repressão aos crimes cometidos por militares. Nesse sentido, a análise do conjunto probatório nos processos criminais será feita de maneira mais adequada sem o fracionamento anteriormente imposto nos muitos casos em que se verificava concurso entre crimes comuns e militares. A execução da penas impostas por tais crimes também será melhor examinada no contexto do juízo único, que poderá conceder ao condenado os benefícios previstos na Lei de execuções com base na unificação das penas impostas. (destaquei)

3. DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR

No site da Câmara dos Deputados, consta que o Projeto de Lei n. 5768, apresentado em 06/07//2016, pelo Deputado Federal Esperidião Amin, iniciou-se com a redação aprovada no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar.

Na Câmara dos Deputados, o projeto apresentado sofreu alteração proposta pelo relator, Deputado Júlio Lopes, tendo acrescentado previsão de que a lei valeria até o dia 31 de dezembro de 2016, sendo que a legislação anterior modificada retomaria a vigência.[4]

A justificativa para a alteração consistiu na realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos no Rio de Janeiro no ano de 2016.

No Senado Federal, o Projeto de Lei n. 5768 recebeu o número 44, tendo sido apresentada a emenda n. 1[5], pela Senadora Vanessa Grazziotin, que visava ampliar o prazo da lei para o dia 31 de dezembro de 2017, tendo como um dos fundamentos a utilização pelo Presidente da República “das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem, em apoio às ações do Plano Nacional de Segurança Pública, no Estado do Rio de Janeiro, no período de 28 de julho a 31 de dezembro de 2017.”

Em Parecer, o Senador Pedro Chaves manifestou-se pela rejeição, na medida em que “Se já entendemos ser constitucional a competência da Justiça Militar da União para julgar crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis, em hipóteses expressamente previstas em Lei, não há razão para limitar a extensão temporal dessa competência.” E continua “Lembrando que o próprio Superior Tribunal Militar (STM) já se manifestou pela preservação da competência da Justiça Militar da União para o julgamento de crime dolosos contra a vida, quando a vítima seja civil, haja a vista a necessidade de se garantir aos militares uma justiça especializada e com conhecimento específico. Aliás, receamos que a regra no sentido de limitar a competência da Justiça Militar unicamente para período específico possa ser interpretada como o estabelecimento de um tribunal de exceção, o que é vedado pelo art. 5º, inciso XXXVII da Constituição Federal.”

Verifica-se que o parecer pela rejeição não mencionou o fato da proposta enviada ao Senado pela Câmara dos Deputados já conter previsão que a tornava lei temporária, mas com efeitos até o dia 31 de dezembro de 2016.

Na justificativa[6] do mencionado projeto de lei, em nenhum momento, menciona a ampliação da competência, tendo como foco, exclusivamente, o julgamento dos militares das Forças Armadas nos crimes dolosos contra a vida de civil, em situações específicas, que serão detalhadas a seguir.

Nota-se, portanto, que em nenhum momento houve menção à ampliação da competência da justiça militar, nem houve debates no Congresso Nacional.

Nas diversas notícias publicadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em seus sites, constam somente informações e discussões dos parlamentares acerca da transferência do julgamento de militares das Forças Armadas, em determinadas situações, para a Justiça Militar da União.

Logo, é possível concluir que houve falha na técnica legislativa.

Isso porque durante os debates discutiram somente a questão do julgamento dos militares das Forças Armadas nos crimes dolosos contra a vida de civis pela Justiça Militar da União, sendo que a alteração que ocorreu é profundamente significativa e, historicamente, a tendência sempre foi excepcionar e limitar a competência da Justiça Militar. O legislador e o Supremo Tribunal Federal sempre trataram a competência da Justiça Militar como restritiva.

O tema é de tamanha repercussão no país e deveria ter sido amplamente debatido, inclusive com a realização de audiências públicas.

A nova alteração legislativa visou na verdade, somente, transferir a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida de civil cometidos por militares das Forças Armadas, nas hipóteses delineadas no § 2º do art. 9º do Código Penal Militar, como nas operações de garantia da lei e da ordem; cumprimento de atribuições que forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa, bem como nas missões militares.

A questão a ser discutida é se a forma como a lei foi aprovada a torna inconstitucional.

Essencial destacar que a ampliação da competência da Justiça Militar não é inconstitucional, pois a Constituição Federal não define quais são os crimes militares, mas outorga essa competência para o legislador ordinário, conforme artigos 124 e 125, § 4º[7], ambos da Constituição Federal. Isto é, cabe ao Congresso Nacional, mediante aprovação de leis ordinárias, dizer o que é crime militar.

Anoto que é possível que o Congresso Nacional, mesmo que o Supremo Tribunal Federal tenha entendimento pacificado por determinada matéria constitucional, aprove lei que contrarie o entendimento da Suprema Corte.

Trata-se de reação legislativa, de superação legislativa da jurisprudência, tema este muito bem abordado pelo Professor Márcio André Lopes Cavalcante[8]

Márcio Cavalcante leciona que:

O STF possui, segundo a CF/88, a missão de dar a última palavra em termos de interpretação da Constituição. Isso não significa, contudo, que o legislador não tenha também a capacidade de interpretação do Texto Constitucional. O Poder Legislativo também é considerado um intérprete autêntico da Constituição e, justamente por isso, pode editar uma lei ou EC tentando superar o entendimento anterior ou provocar um novo pronunciamento do STF a respeito de determinado tema, mesmo que a Corte já tenha decidido o assunto em sede de controle concentrado de constitucionalidade. A isso se dá o nome de “reação legislativa” ou “superação legislativa da jurisprudência”.

O Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, não fica vinculado. Assim, o STF não proíbe que o Poder Legislativo edite leis ou emendas constitucionais em sentido contrário ao que a Corte já decidiu. Não existe uma vedação prévia a tais atos normativos. O legislador pode, por emenda constitucional ou lei ordinária, superar a jurisprudência. Trata-se de uma reação legislativa à decisão da Corte Constitucional com o objetivo de reversão jurisprudencial.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal interpreta o art. 9º do Código Penal Militar, restritivamente[9], em razão da redação anterior do art. 9º que limitava os crimes militares àqueles dispostos no Código Penal Militar. A interpretação restritiva não decorre, predominantemente, da Constituição, mas sim do artigo 9º do Código Penal Militar, razão pela qual a ampliação da competência não afronta o Supremo Tribunal Federal, não se tratando, pois, de reação legislativa.

Portanto, deve a discussão acerca da constitucionalidade da lei referir-se à ausência de conhecimento dos parlamentares que a aprovaram, no sentido de que estavam ampliando demasiadamente a competência da Justiça Militar.

Conforme demonstrado, em nenhum momento houve discussão acerca da ampliação da competência, tendo todos os debates girados em torno da competência da Justiça Militar da União para processar e julgar os militares das Forças Armadas nas situações previstas no § 2º do art. 9º, do Código Penal Militar.

O responsável pela redação atual do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar realizou a alteração em absoluto silêncio, sem provocar o debate.

Em razão disso, haveria inconstitucionalidade?

A inconstitucionalidade pode ser formal ou material.

A inconstitucionalidade formal refere-se à inobservância da forma preconizada pela Constituição. A material trata do conteúdo da lei quando é incompatível com a Constituição.

A inconstitucionalidade formal subdivide-se em orgânica e propriamente dita. Esta trata da inobservância do processo legislativo. Aquela trata da não observância da competência para deflagrar a lei, como a hipótese do estado tratar de matéria de competência da união, a exemplo do direito processual.

A inconstitucionalidade formal pode se dar, ainda, por violação a pressuposto objetivo do ato, como o caso de edição de medida provisória sem a presença da relevância e urgência.

Igualmente, pode-se falar em inconstitucionalidade formal por violação a pressuposto objetivo do ato quando a lei aprovada não tiver sido discutida no Congresso Nacional, com a aprovação cega da lei, em razão de vício na vontade do parlamentar, por total desconhecimento da lei aprovada.

Com efeito, os artigos 64 e 65, ambos da Constituição Federal, são claros ao afirmar que os projetos de lei serão discutidos e votados.

Art. 64. A discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores terão início na Câmara dos Deputados. (destaquei)

Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. (destaquei)

No caso da alteração do inciso II, do art. 9º do Código Penal Militar, conforme exposto, restou claro que a alteração não foi, em nenhum momento, discutida, tendo sido aprovada sem os parlamentares terem conhecimento da alteração, incidindo em vício de vontade, pois a justificativa do projeto é silente e os parlamentares que apresentaram o projeto não provocaram a necessária discussão.

É possível falar que houve dolo negativo em não provocar o debate em tema de tamanha repercussão no país. Trata-se de aplicação de princípio geral de direito, consectário lógico da boa-fé objetiva que rege o dia a dia do operador do direito em todas as áreas.

Não se pode considerar o mau voto do parlamentar ou a desídia no exercício do voto como fundamento para perquirir a inconstitucionalidade de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional, mas no caso salta aos olhos a violação ao art. 65 da Constituição Federal, em razão dos parlamentares que aprovaram a lei terem sido induzidos ao erro, em razão do dolo negativo.

O caso apresentado se assemelha à hipótese de contrabando legislativo ou caldas de lei.

O contrabando legislativo consiste na “inserção, por meio de emenda parlamentar, de assunto diferente do que é tratado na medida provisória que tramita no Congresso Nacional”[10], com o fim de que o assunto inserido através de um artigo seja aprovado sem o prévio conhecimento e debate por parte dos parlamentares. Essa prática é vedada pelo Supremo Tribunal Federal.

Joaquim Leitão Júnior leciona que “Caldas de lei ou contrabando legislativo são expressões equivalentes usadas pelo jurista Michel Temer, na hipótese em que num Projeto de Lei é acrescentado sorrateiramente um assunto que nada tem a ver com o projeto com o fim de não chamar a atenção.”[11] (destaquei)

Portanto, houve no caso uma espécie de contrabando legislativo.

Outro ponto importante a ser destacado[12], refere-se ao fato do Projeto de Lei encaminhado ao Presidente da República para ser sancionado, constar no art. 2º ser uma lei temporária, nos seguintes termos:

Art. 2 o Esta Lei terá vigência até o dia 31 de dezembro de 2016 e, ao final da vigência desta Lei, retornará a ter eficácia a legislação anterior por ela modificada.

O Presidente da República, após ouvir o Ministério da Defesa manifestou-se pelo veto ao artigo 2º, uma vez que “As hipóteses que justificam a competência da Justiça Militar da União, incluídas as estabelecidas pelo projeto sob sanção, não devem ser de caráter transitório, sob pena de comprometer a segurança jurídica. Ademais, o emprego recorrente das Forças Armadas como último recurso estatal em ações de segurança pública justifica a existência de uma norma permanente a regular a questão. Por fim, não se configura adequado estabelecer-se competência de tribunal com limitação temporal, sob pena de se poder interpretar a medida como o estabelecimento de um tribunal de exceção, vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVII da Constituição”.

O art. 66, § 2º, da Constituição Federal assevera que o “O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea.”

A finalidade do § 2º do art. 66 da Constituição Federal é evitar que o Presidente da República altere a essência do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional, desconfigurando o que foi aprovado pelos representantes do povo e dos estados.

Assim, em uma interpretação teleológica, aquela que visa a finalidade da norma, tem-se que o veto do Presidente da República alterou o principal objetivo da norma, pois tornou permanente o que era para ser temporário.

Mutatis mutandis, é como se tivesse retirado o “não” de um artigo de lei, o que muda completamente o sentido do texto.

Dessa forma, há inconstitucionalidade formal na sanção da lei.

Lado outro, em uma interpretação literal, não há que se falar em vício de inconstitucionalidade formal, na medida em que o art. 66, § 2º, da Constituição Federal foi cumprido na íntegra, uma vez que houve veto de texto integral de artigo.

Michel Temer, em seu livro “Elementos de Direito Constitucional[13][14], escreveu que “é impossível o veto aditivo ou restabelecedor, isto é, o veto que adicione algo ao projeto de lei ou restabeleça artigos, parágrafos, incisos ou alíneas suprimidas pelo Congresso Nacional”.

E ainda prossegue:

Assim, o fundamento doutrinário que alicerça a concepção de que o veto parcial deve ter maior extensão suporta-se na ideia de que, vetando palavras ou conjunto de palavras, o Chefe do Executivo pode desnaturar o projeto de lei, modificando o seu todo lógico, podendo, ainda, com esse instrumento, legislar. Basta – como se disse – vetar advérbio negativo.

Data venia, não é bom esse fundamento, uma vez que: a) o todo lógico da lei pode desfigurar-se também pelo veto, por inteiro, do artigo, do inciso, do item ou da alínea. E até com maiores possibilidades; b) se isto ocorrer – tanto em razão do veto da palavra ou de artigo – o que se verifica é usurpação de competência  pelo Executivo, circunstância vedada pelo art. 2º da CF; c) qual a solução para ambas as hipóteses? O constituinte as previu: aposto o veto, retoma o projeto ao Legislativo e este poderá rejeitá-lo, com o quê se manterá o todo lógico da lei. Objetiva-se, entretanto: a rejeição do veto exige maioria absoluta e, por isso, uma minoria (1/3) poderá editar a lei que, na verdade, não representa a vontade do legislador. Responde-se: se isto suceder, qualquer do povo, incluídos os membros do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário, pode representar aos legitimados constitucionalmente (art. 103, I a IX, da CF) para a promoção da representação de inconstitucionalidade daquela lei em face  de usurpação de competência vedada pelo art. 2º da CF. (destaquei)

Nota-se, portanto, que o próprio Presidente da República entende ser inconstitucional v

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